Alma, Epistemologia e o Conceito Escrituralista

Introdução

O debate sobre a natureza da alma é um dos pilares da filosofia ocidental e islâmica, tendo sido abordado de maneiras distintas por figuras como Avicenna, Averroes e Tomás de Aquino. No entanto, o escrituralismo, uma abordagem desenvolvida no século XX e XXI por pensadores como Gordon Haddon Clark e Vincent Cheung, propõe uma estrutura de pensamento centrada na revelação bíblica, rejeitando a autonomia da razão humana. Este artigo explora como o escrituralismo oferece uma resposta mais coerente e teologicamente alinhada às questões que envolvem a natureza da alma, destacando o papel do Logos Divino.

Seção 1: As Visões Clássicas sobre a Alma

1.1 Avicenna (Ibn Sina)

Avicenna propôs uma distinção ontológica fundamental entre essência e existência, afirmando que o conhecimento verdadeiro depende do Intelecto Ativo, uma entidade transcendental que ilumina a mente humana. A alma, em sua visão, é uma perfeição do corpo, mas é imortal e separada da matéria¹. A epistemologia de Avicenna se baseia na iluminação pelo Intelecto Ativo, levantando questões sobre a autonomia da alma e a relação com Deus².

1.2 Averroes (Ibn Rushd)

Averroes argumentou que o intelecto é único e compartilhado por todos os seres humanos. Essa tese da unidade do intelecto sugeria que não existe individualidade no pensamento, o que comprometeria a ideia de imortalidade pessoal³. Ele também sustentou que a razão humana poderia compreender as verdades universais sem a necessidade de um intermediário divino, uma posição que provocou forte oposição entre os teólogos cristãos⁴.

1.3 Tomás de Aquino

Tomás de Aquino tentou reconciliar a filosofia aristotélica com a doutrina cristã, defendendo que a alma é a forma substancial do corpo. Ele via a razão e a fé como complementares, afirmando que o conhecimento humano se inicia com a percepção sensorial, mas é elevado pela capacidade racional. No entanto, ele manteve uma distinção entre causas primárias (Deus) e secundárias (leis naturais), o que cria tensões filosóficas na teologia cristã⁵.

Notas de rodapé:

  1. Avicenna, The Metaphysics of The Healing (tradução em inglês por Michael Marmura). A obra explora a distinção entre essência e existência e o papel do Intelecto Ativo na teoria do conhecimento.
  2. Avicenna, Psychology from The Healing, seção onde ele detalha a imortalidade da alma e sua relação com o corpo.
  3. Averroes, Commentarium Magnum in Aristotelis De Anima, onde ele desenvolve sua tese da unidade do intelecto.
  4. Referência à crítica de Tomás de Aquino em De Unitate Intellectus Contra Averroistas.
  5. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I.75–76, onde ele discute a relação entre a alma e o corpo, além da causalidade.
  6. Gordon H. Clark, O Senhor Deus da Verdade. Clark argumenta que o conhecimento só pode ser garantido quando derivado da Bíblia, discutindo a insuficiência das epistemologias autônomas.
  7. Vincent Cheung, Cativo à Razão. Cheung critica o empirismo e o racionalismo, defendendo a necessidade de uma epistemologia fundamentada na revelação divina.

Seção 2: O Pensamento Escrituralista em Profundidade

2.1 Fundamentos da Cosmovisão Escrituralista

O escrituralismo reconhece que todos possuem uma cosmovisão composta de três pilares: epistemologia, metafísica e ética. Gordon Clark defende que a Bíblia é o axioma central para qualquer sistema de conhecimento verdadeiro. Sem esse fundamento, a epistemologia torna-se instável e propensa ao erro.

2.2 Epistemologia Escrituralista

A epistemologia escrituralista parte do princípio de que todo conhecimento verdadeiro é proposicional e deve ser ancorado na revelação bíblica. Gordon Haddon Clark argumenta que a Bíblia é o axioma supremo que sustenta qualquer entendimento correto da realidade. Em O Senhor Deus da Verdade, Clark enfatiza que sem a autoridade das Escrituras, a razão humana é vulnerável a erros e inconsistências¹. Ele rejeita o empirismo, alegando que os sentidos humanos, afetados pelo pecado, são incapazes de proporcionar conhecimento confiável. Apenas o Logos Divino pode comunicar proposições verdadeiras de forma infalível².’

Vincent Cheung aprofunda essa visão em Questões Últimas e Cativo à Razão, defendendo uma abordagem epistemológica ocasionalista. Para Cheung, as experiências sensoriais não produzem conhecimento por si mesmas; elas apenas servem como ocasiões para que Deus, por meio do Logos, revele a verdade à mente humana³. Isso implica que toda compreensão é diretamente causada por Deus, eliminando a ideia de autonomia intelectual⁴. Esse ocasionalismo radical destaca a soberania de Deus em todas as operações cognitivas.

2.3 Metafísica e o Logos Divino

A metafísica escrituralista, segundo Clark, é inseparável da doutrina do Logos. Em Logos Joanino, Clark descreve o Logos como a razão divina que ordena e sustenta o universo⁵. Ele critica a visão aristotélica de uma causalidade autônoma, afirmando que o mundo não é um sistema mecanicista independente, mas um cosmos teleológico, inteiramente dependente da vontade de Deus. A soberania divina é o fundamento de toda realidade, tornando qualquer outra visão metafísica insuficiente e incoerente⁶.

Vincent Cheung adota uma postura ainda mais rígida com relação à causalidade. Em suas obras, ele defende que Deus é a causa direta de todos os eventos e fenômenos, físicos ou intelectuais. O ocasionalismo metafísico de Cheung nega qualquer poder causal intrínseco às criaturas ou à natureza. Tudo é resultado da ação divina contínua⁷. Isso contrasta diretamente com a noção de Tomás de Aquino de causas secundárias que operam sob a lei natural, algo que o escrituralismo considera insuficiente para explicar a dependência da criação em relação ao Criador⁸.

2.4 Ética Escrituralista

A ética no escrituralismo é objetiva e fundamentada na revelação divina. Clark, em A Christian View of Men and Things, argumenta que os princípios morais não podem ser derivados da natureza humana ou da razão, como propõe a teoria da lei natural de Tomás de Aquino. Em vez disso, a moralidade é um reflexo do caráter imutável de Deus, revelado nas Escrituras⁹.

Cheung reforça essa perspectiva em Cativo à Razão, criticando qualquer abordagem ética que dependa de julgamentos humanos. Ele afirma que, sem a revelação divina, a ética se torna relativa e subjetiva, comprometendo-se com as falhas da razão humana. A ética escrituralista, por outro lado, proporciona uma base fixa e inquestionável, necessária para a vida moral cristã¹⁰.

Notas de rodapé:

  1. Gordon H. Clark, O Senhor Deus da Verdade, onde ele argumenta contra o empirismo e estabelece a importância da Bíblia como fonte de todo conhecimento verdadeiro.
  2. Clark, Logos Joanino, onde ele detalha o papel do Logos na comunicação proposicional de Deus.
  3. Vincent Cheung, Questões Últimas, onde Cheung expõe sua visão ocasionalista, explicando que o conhecimento é concedido diretamente por Deus.
  4. Cheung, Cativo à Razão, onde ele critica o racionalismo e defende a necessidade da revelação divina para qualquer entendimento significativo.
  5. Clark, Logos Joanino, onde ele critica a filosofia aristotélica e defende uma metafísica baseada no Logos.
  6. Clark, A Christian View of Men and Things, em que ele destaca a insuficiência das explicações naturalistas da causalidade.
  7. Cheung, Questões Últimas, onde ele apresenta sua defesa do ocasionalismo radical, rejeitando a causalidade natural.
  8. Comparação crítica com Tomás de Aquino, que é abordada mais profundamente na seção de críticas.
  9. Clark, A Christian View of Men and Things, discutindo a ética objetiva baseada na revelação divina.
  10. Cheung, Cativo à Razão, enfatizando que a ética deve ser fundamentada na soberania e na revelação de Deus.

Seção 3: Comparação e Crítica — Escrituralismo vs. Teorias Clássicas

3.1 Análise Crítica de Avicenna

A filosofia de Avicenna, com sua separação ontológica entre essência e existência e sua dependência do Intelecto Ativo como mediador do conhecimento, levanta sérias questões quando confrontada com o escrituralismo. Clark critica essa visão em O Senhor Deus da Verdade, afirmando que o conhecimento proposicional deve vir diretamente de Deus, sem a necessidade de intermediários abstratos¹. Ele argumenta que a noção de Avicenna de uma entidade intermediária entre Deus e o homem é desnecessária e compromete a soberania divina.

Cheung, em Questões Últimas, vai além ao aplicar sua perspectiva ocasionalista, argumentando que a epistemologia de Avicenna falha em reconhecer a dependência total da mente humana na revelação divina². Em vez de um Intelecto Ativo que ilumina a mente, Cheung sustenta que Deus, através do Logos, é a fonte direta de todo conhecimento. As experiências sensoriais, portanto, servem apenas como ocasiões para a intervenção divina, em vez de serem a base para a aquisição de conhecimento³.

3.2 Crítica à Unidade do Intelecto de Averroes

A tese da unidade do intelecto de Averroes, que propõe que há um único intelecto compartilhado por toda a humanidade, é um ponto de intensa controvérsia. Clark, em Logos Joanino, critica essa ideia por destruir a individualidade da alma e a noção de responsabilidade moral pessoal⁴. Para Clark, cada pessoa é dotada de uma alma individual, criada por Deus, e é essa alma que é iluminada pelo Logos, garantindo a possibilidade de conhecimento individual e imortalidade.

Cheung também oferece uma crítica contundente em Cativo à Razão. Ele argumenta que a tese de Averroes é incompatível com a doutrina cristã da imortalidade pessoal, porque nega a existência de almas individuais separadas. Cheung enfatiza que a mente humana depende inteiramente de Deus para cada ato de conhecimento, e qualquer concepção de um intelecto universal contradiz a natureza relacional do ser humano com Deus⁵.

3.3 Tomás de Aquino e a Razão Natural

Tomás de Aquino apresenta um desafio diferente para o escrituralismo, uma vez que sua tentativa de harmonizar a fé e a razão é mais próxima da teologia cristã. No entanto, Clark aponta falhas fundamentais na abordagem de Aquino, especialmente sua dependência na percepção sensorial e na razão natural como pontos de partida para o conhecimento⁶. Clark, em O Senhor Deus da Verdade, afirma que qualquer epistemologia que não se baseie exclusivamente na Bíblia é suscetível a erros, já que a razão humana é corrompida pelo pecado.

Cheung, em Questões Últimas, critica a ética natural de Aquino, argumentando que, embora Aquino afirme que as leis morais podem ser conhecidas pela razão, isso ignora a necessidade da revelação divina para uma compreensão moral verdadeira. A ética escrituralista, por outro lado, sustenta que a moralidade é intransigente e deriva diretamente da vontade de Deus⁷.

3.4 A Superioridade da Abordagem Escrituralista

O escrituralismo se destaca por apresentar uma estrutura teocêntrica completa, que não só responde aos problemas filosóficos clássicos, mas também oferece uma base segura e teologicamente alinhada para o conhecimento, a existência e a moralidade. Clark e Cheung defendem que a autoridade das Escrituras e a soberania de Deus garantem que todo entendimento humano seja correto e imutável. Ao rejeitar o empirismo e a razão autônoma, o escrituralismo proporciona uma epistemologia que é segura e teologicamente sólida⁸.

Notas de rodapé:

  1. Gordon H. Clark, O Senhor Deus da Verdade, discute a insuficiência das epistemologias que não reconhecem a soberania divina.
  2. Vincent Cheung, Questões Últimas, enfatiza que todo conhecimento deve ser concedido por Deus, sem intermediários abstratos.
  3. Cheung, Cativo à Razão, defende que a mente humana não tem capacidade autônoma de adquirir conhecimento sem a iluminação divina.
  4. Clark, Logos Joanino, onde ele refuta a ideia de um intelecto universal e defende a individualidade da alma.
  5. Cheung, Cativo à Razão, critica a unidade do intelecto como incompatível com a teologia cristã da responsabilidade pessoal.
  6. Clark, O Senhor Deus da Verdade, critica a confiança de Aquino na percepção sensorial e na razão natural.
  7. Cheung, Questões Últimas, discute a necessidade da revelação divina para a compreensão ética verdadeira.
  8. Clark e Cheung, ao longo de suas obras, desenvolvem a visão de que apenas o escrituralismo oferece uma base epistemológica e moral confiável.

Pai dedicado e marido apaixonado, Orlando atua como teólogo elucidativo, aberto ao diálogo e à conversação, mas também firme na resposta às cosmovisões que não se submetem à Palavra de Deus. Sua vocação é articular a verdade bíblica de maneira clara, confrontando visões contrárias e edificando uma visão de mundo alicerçada nas Escrituras.

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